sábado, 9 de julho de 2011

Leopoldo, a cegonha


Quase, quase… um primeiro dia de verão.

Que ainda não o era.

A primavera tardia transformara-se num tempo de chuvas, intercalando pingos de Inverno e as cores fortes do verão, secando as espigas de trigo e alourando os campos.

Princípios de Junho. Em breve – muito em breve – o estio seco cobriria a planície de videiras multicores, fardos de palha e cantos de ceifeiras. O céu ficaria mais azul e sem nuvens, as crias dos pássaros abandonariam os ninhos, os ribeiros murchariam sem água e as papoilas seriam substituídas por malmequeres amarelos.

No alto dos eucaliptos, as cegonhas mais jovens aprenderiam a voar, treinando a fantástica viagem de regresso a africa.

Ou pelo menos… quase todas.

Leopoldo Malaquias era uma dessas cegonhas que, pelos ossos do ofício, não poderia acompanhar a família no regresso aos planaltos quentes de africa. E isto porque a veterana cegonha Malaquias tinha uma das tais profissões especiais, que não se compadecem com o rodar das estações.

Leopoldo Malaquias era… um entregador.

E se os meus amigos estão pensando com um sorriso naquela imagem tão familiar de uma cegonha carregando um embrulho de pano, seguro no bico… com uma criança lá dentro…pois é verdade, não se enganaram por completo. Mas…

Bem… existe sempre um “mas”, não é verdade? Ou vocês sempre acreditaram que as cegonhas só transportavam… bebés? Não, claro que não…. Seria um desperdício enorme de talento, não vos parece?

Pois é verdade, Leopoldo Malaquias era um desses anónimos entregadores, um estafeta incansável e competente, trilhando os cinco continentes e podendo gabar-se – sem falsa modéstia – de nunca ter extraviado uma encomenda. Não, nunca.

Mas também é verdade que – apesar dos muitos anos que já levava de profissão – nunca fora solicitado para entregar uma encomenda… como aquela.

Abriu e fechou o longo bico, divertido. Os humanos – sim, quem mais senão os humanos para estabelecer aquele laço tão especial com as cegonhas – ainda conseguiam, de tempos a tempos… surpreendê-lo. Lembrava-se de já ter transportado bebés – muitos – entre continentes, alguns até adoptados, flores, pássaros exóticos, até alianças de ouro… e uma bicicleta; entregas estranhas, porventura excêntricas… mas certamente com significado especial para quem as enviava… e sobretudo para quem as recebia.

Muito raramente, a cegonha Leopoldo pernoitava no local de destino, após efectuar a entrega. No princípio… adorava espreitar pelas janelas embaciadas, ouvir os gritos de alegria quando o destinatário se apercebia que chegara a sua tão preciosa encomenda. Com o tempo, a monotonia vencera a curiosidade e limitava-se a deixar o precioso embrulho, pousado num beiral ou junto da chaminé… e retornar a casa, para junto da sua própria família. Sim… apesar dos humanos nem se aperceberem de tal…. Ela também tinha uma família.

Ajeitou cuidadosamente a sua encomenda, prendeu os cordões que fechavam o embrulho de pano e aprontou-se para partir.

Seria a primeira vez que iria entregar uma pequena caixinha de madeira contendo… sementes. Sim, isso mesmo, perceberam bem… sementes.

A história era longa, e nem lhe competia a ele, Leopoldo Malaquias, reproduzi-la. Sabia simplesmente que o destinatário da encomenda era uma mulher, de meia idade, com filhos, com uma história de vida complicada. Sabia também que o remetente da encomenda era um homem, também com filhos, apesar de não lhe conhecer o nome ou a origem. E sabia também que a caixinha de madeira continha seis sementes, acompanhadas de um papel dobrado, contendo talvez a explicação de tão estranha entrega.

E na verdade, sabia ainda outra coisa. Que a mulher a quem se destinava a encomenda… não podia ter mais filhos, por motivos que certamente não eram do seu pelouro.

Ensaiou um bater de asas, reviu mentalmente todos os procedimentos… antes de se lançar ao voo. A viagem era longa, um oceano para atravessar, era imperioso não esquecer nada.

Três, quatro, pronto… talvez cinco vezes. Mas para quê resistir mais à tentação? Sabia perfeitamente que mais tarde ou mais cedo abriria a pequena caixa, roído pela curiosidade. O que se encontraria escrito no pequeno papel?

Com um gesto certeiro do longo bico, retirou o laço que segurava o papel dobrado da embalagem. Este tombou sobre o terraço de tijolo, desdobrando-se perante a sua curiosidade. Finalmente podia ler.

" Três destas sementes são tuas, as outras minhas. São iguais, impossível distingui-las. A todas elas daremos água, afastaremos os predadores e cantaremos canções de embalar. Crescerão num canteiro a que chamaremos de lar e quando elas próprias gerarem sementes… fechar-se-á o ciclo do mais improvável dos amores que este mundo já conheceu. E assim será. "

A cegonha Malaquias passou o bico pelas penas brancas, num gesto inconsciente de meditação. Não compreendera em absoluto o conteúdo da estranha mensagem… mas verdade seja dita, os humanos tinham esse raro condão de escrever coisas estranhas, ilógicas, irracionais… regadas por aquela palavra "amor" que teimavam em utilizar de modo quase absurdo.

Sementes? O que quereriam os humanos dizer com… sementes?

Não, decididamente… um mundo demasiado estranho, o dos humanos.

Bateu as asas e lançou-se nos ares. Mais uma entrega.

Seis sementes, de enigmático significado.

Um homem, uma mulher, seis sementes.

Ser cegonha, viver a vida de uma cegonha… era na verdade, incomparavelmente mais simples…

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O estafeta nº 15


- Estafeta número doze… muito bem… aqui tem…. Número treze… muito bem, obrigado, aqui está a sua encomenda…. Estafeta número catorze… a sua, está aqui, pode pegar… estafeta número quinze…

( silêncio )

- … estafeta número quinze?

( silêncio )

- Estafeta número quinze? Juan? Onde está o Juan?

Um silêncio embaraçado envolveu a sala. Mestre Policarpo, chefe de todo o departamento de distribuição postal, engrossava a voz… e quando isso acontecia….

- Juan !! – gritou, esticando o pescoço para parecer mais alto - … sempre atrasado… onde está esse inútil?

Ninguém lhe respondeu.

Todos os estafetas sabiam muito bem que os atrasos de Juan à chamada matinal só podiam significar uma coisa. E portanto… nem valia a pena dizer o que fosse, pois uma simples virgula só iria irritar ainda mais mestre Policarpo, já de si à beira da explosão.

Um bater de asas vigoroso e alguns segundos depois, um pombo cinzento claro, de pescoço branco e penas brilhantes, entrou pela janela aberta da torre e pousou desajeitado no chão de pedra, a meia distância entre o mestre Policarpo e os catorze estafetas, bem alinhados.

- Perdão, mestre Policarpo… pelo meu atraso… o vento estava horrível, uma confusão enorme… até uma águia me perseguiu… peço perdão…

Mestre Policarpo, encarregado do serviço de distribuição postal, tinha a seu cargo quinze estafetas… quinze pombos correio.

Ele próprio já fora estafeta, nos seus tempos de juventude; e no entanto, apesar da já longa carreira, nunca encontrara um estafeta como Juan, o pombo correio cinzento de pescoço branco.

- Juan… ( e esforçou-se por manter a voz inalterada ) … essa é a desculpa mais esfarrapada que já ouvi em toda a minha vida… e você está novamente atrasado…

- Perdão, mestre… não voltará a acontecer…

Mestre Policarpo alisou as penas, tentando acalmar a raiva.

O pombo Juan era o mais veloz, astuto, o que melhor se orientava, o que nunca deixara cair uma encomenda ou tampouco fora ferido ou capturado pelas águias. Mas Juan também era… um incorrigível pinga-amor, e todos conheciam de sobra os verdadeiros motivos dos constantes atrasos às chamadas matinais.

O pombo Juan adormecia… ao raiar da aurora.

- A sua encomenda, Juan… - e entregou-lhe uma pequena anilha de mensagem – a sua entrega de hoje…

Juan enfiou a anilha na pata e perfilou-se junto dos colegas, já alinhados para a partida.

- Vá… vão…. – mestre Policarpo bateu as asas em voz de comando – e cuidado… muito cuidado lá fora…

Um a um, os estafetas abriram as asas e descolaram, galgando a janela aberta da torre rumo a um céu sem nuvens. Cada um levava uma mensagem, uma encomenda, uma notícia, cada qual para seu destino.

Na torre ao lado, residia mestre Policarpo.

E era precisamente numa das janelas abertas dessa torre que espreitava ansiosa uma pomba branca, olhos verdes claros como a erva molhada dos jardins.

Pia era o seu nome… e mestre Policarpo o seu pai.

O velho pombo correio ficou a vê-los partir, ora acenando a cada um deles, à medida que ultrapassavam o umbral da janela… ora espiando pelo canto do olho a pomba branca na sua janela.

O estafeta Juan foi o último a lançar-se no espaço.

Bateu as asas, deu duas voltas sobre si mesmo e antes de se aventurar no espaço aberto contornou a torre e desceu planando até à janela onde Pia, a pomba branca, aguardava imóvel e em silêncio.

Não chegou a pousar. Batendo simplesmente as asas – mais devagar – planou diante dela e por um breve segundo… os bicos roçaram um no outro, num secreto código de entendimento.

Depois, soltou-se nos ares, grasniu algo baixinho e voou em direcção ao sol.

Tinha uma mensagem para entregar.

Da janela da primeira torre, mestre Policarpo observara toda a cena.

Abanou a cabeça, num gesto difícil de definir.

- Jovens…. – murmurou baixinho – jovens… e loucos… ahhh.... se eu tivesse menos vinte anos….

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Efemerus


( imagem de minha autoria )

- Sinto-me… velho…

- Ora… tu, velho? Estás com melhor aspecto do que eu, ninguém diria que temos a mesma idade…

- … velho… velho e cansado…

- Tu és um rezingão, é o que tu és, sempre descontente com alguma coisa… sinceramente, não sei o que vi em ti, não me lembro que tu fosses assim, quando nos conhecemos…

- Filia, minha querida… tu és uma jovem, continuas bela como sempre. Agora, já olhaste bem para mim? Oh, como me sinto velho…

Ela olhou.

E um segundo depois apeteceu-lhe gritar e desaparecer.

- Efemerus, tu és um idiota. Um verdadeiro idiota. Já estamos juntos há quanto tempo? Mais de metade da nossa vida… nunca estiveste doente… viste nascer três filhos maravilhosos…

- Isso é verdade, mas…

- Nem “mas” nem meio “mas”… és um ingrato…seduziste-me ao primeiro olhar, não te larguei em momento algum, nunca nos zangámos, nunca nos faltou alimento, conforto, amigos… que mais queres tu da vida?

- Eu queria… eu queria mais… mais tempo de vida…

- Para quê, meu querido Efemerus? Para quê?

- Não sei ao certo, Filia… sinto só uma leve injustiça em viver tão pouco tempo…

Filia abanou as asas lustrosas, naquele jeito ímpar que encantara Efemerus, há muito… muito tempo atrás. Era verdade… que se aproximava a hora.

Filia e Efemerus eram dois vulgares insectos, da curiosa família dos efemerópteros, que deviam o nome precisamente ao facto de a sua esperança de vida média ser de … 24 horas, um simples dia pelo padrão humano, um piscar de olhos para uma tartaruga, um leve brisa para uma sequóia, um bocejo do universo.

- Efemerus?

- Sim, meu amor?

Ela entrelaçou as asas translúcidas nas dele, sentindo-o frio. O tempo esgotava-se.

- Efemerus… sabes uma coisa? Adorei cada um dos segundos que vivemos juntos… esvoaçando por aí, fugindo da chuva, alimentando os nossos filhotes… e descobri algo que provavelmente tu ainda não descobriste, apesar de termos a mesma idade…

Ele fitou-a longamente, os olhos já baços de um fim eminente.

- E o que foi.. que descobriste, Filia?

A voz fraquejava-lhe.

- Descobri, meu companheiro de aventuras… que valeu a pena. Que um dia, uma primavera, um ano, um milénio… não alteram rigorosamente nada do que somos, ou do que vivemos… ou do que deixámos de viver. Amanhã… e disto tenho a certeza absoluta… eu, tu, todos os nossos amigos, seremos simplesmente memórias no baú de lembranças dos que vierem depois de nós. Portanto, meu querido Efemerus… valeu a pena, não concordas?

domingo, 5 de junho de 2011

Ao acordar...


Esfregou os olhos na penumbra, estranhando todo aquele silêncio.

Será assim tão tarde? – pensou – ou alguém se esqueceu de me chamar?

Um bocejo, um esticão preguiçoso dos braços.

Em breve, recomeçaria a rotina diária; levantar, lavar a cara, vestir, beber um copo de leite, talvez acompanhado de uma torrada ou de uma fatia de queijo, apanhar à pressa os livros e cadernos, enfiar tudo na mochila, correr até à esquina, juntar-se ao Zé Manel e rumar à escola, para mais um dia de aventuras e desventuras.

- Mãe… - gritou, mesmo de olhos fechados – estou atrasado?

Ninguém lhe respondeu. Os primeiros minutos do dia correspondiam invariavelmente a uma azáfama de tarefas apressadas, a mãe tentando arranjar-se e a gritar em simultâneo, pela porta entreaberta do quarto – Luís, não te esqueças de apanhar o dinheiro para a senha do almoço… vai buscar o equipamento de ginástica lavado, esse que tens aí está uma miséria…

Aos solavancos, ele lá cumpria o solicitado, entre duas mordidelas na torrada e um piscar de olhos à televisão.

- Mãe… - lá foi repetindo – estou atrasado?

Ficou com a sensação de ter ouvido ao longe um gotejar abafado de palavras; talvez a mãe estivesse a falar ao telemóvel e por isso não lhe pudesse responder. A mãe dependia de mil telefonemas, era esse o seu trabalho.

Um dia dissera-lhe:

- Mãe… são quase dez da noite… e ainda estão a telefonar-te do emprego?

E enquanto encolhia os ombros num gesto impotente, a mãe lá lhe foi explicando que secretariar a direcção de uma empresa era mesmo assim, por vezes surgiam assuntos fora de horas, reuniões para marcar ou desmarcar, pedidos de contactos, pontos de situação para assuntos urgentes, enfim… um rol de imprevistos que nada tinha a ver com o horário das nove às sete da maioria das pessoas.

Em contrapartida, podia gabar-se de a sua própria vida ser tranquila, rotineira até; igual à de qualquer jovem de dezasseis anos, os dias na escola, os amigos, os namoros, a folia dos fins de semana, enfim… o normal, simplesmente o normal.

- Mãe… - e levantou um pouco mais o tom de voz – que horas são? Estou atrasado?

Um jorro súbito de luz irrompeu pelo quarto.

Abriu a muito custo os olhos, as mãos trémulas a proteger as pálpebras de tão ofuscante claridade.

- Mãe? – balbuciou.

- Senhor Luís… ora viva, como vai isso? Então, hoje está preguiçoso, é? Olhe que todos já estão a tomar o pequeno almoço, só falta você… quer ajuda para se levantar?

- M..Mãe? Mãe?

A mulher de branco exibiu um sorriso compreensivo.

- Rita, senhor Luís, sou a Rita, então não me está a reconhecer? A enfermeira Rita… vá… quer que o ajude a levantar-se?

Rita? Enfermeira Rita? Sim, talvez… uma leve memória… nada de concreto, mas o rosto era-lhe familiar, sim…. Só não sabia de onde…

- Você… - murmurou - … você não é a minha mãe… onde está a minha mãe?

A enfermeira Rita puxou os lençóis, ajudando-o a erguer-se lentamente.

- Oh, senhor Luís… pois não, claro que não sou a sua mãe… daqui a pouquinho, vai ver… já se vai recordar outra vez… eu sou a enfermeira Rita, não se lembra? Aqui da clínica… então o senhor Luís já não se lembra de quantos anos tem? A sua mãe já morreu… há muito tempo… e o senhor agora vive aqui connosco… e nós gostamos muito de o ter aqui… vá, apoie-se aqui no meu braço, isso… vá, um pouco mais de força… isso mesmo… agora a outra perna…

Com paciência infinita, esperou que ele se equilibrasse.

Luís Ezequiel Moniz Monteiro, 81 anos de idade… sindromas de Parkinson e Alzheimer.

Um amanhecer sempre diferente, retorcido pelas memórias de um passado que já não existia mais, senão nas suas lembranças.

A realidade – conforme a enfermeira Rita presenciava todos os dias – era algo de muito subjectivo, para a vintena de doentes internados naquela clínica; cada um tinha a sua própria realidade, o seu próprio tempo presente. E ela, Rita, vestia todas as manhãs mil papéis, desde a mãe imaginária do senhor Luís a tantos outros, personagens fictícias de um tempo presente mas bem reais… para todos aqueles que ela ajudava a erguer da cama, a vestir, a alimentar-se, a deitar.

- M…Mãe… você pode ir perguntar à minha mãe… se eu estou atrasado?

terça-feira, 31 de maio de 2011

Todos os castelos nascem nas nuvens


Por vezes – tantas vezes – a realidade assumia no baú das memórias um peso tão incerto quanto o da fantasia; simples flocos de algodão doce.

O ontem, enquanto sinónimo de passado… travesti de sonhos desejados. O que era a realidade, senão o conjunto de todas as coisas que ele decidira aceitar como reais, verdadeiras? Ele decidira… simplesmente isso, ele decidira.

Fechou os olhos à espera do soar da primeira badalada.

Por vezes… tinha uma certa dificuldade em separar o que – no passado já vivido – realmente vivera, confrontado com a ficção de todas as personagens que já encarnara, confundido com todos os papéis que já declamara, as histórias que inventara, as pessoas de carne e osso que desenhara.

Em sonhos tão reais como dias de sol, viajara até aos confins do mundo, abraçara mil profissões, vestira todos os rostos e encenações de humano insatisfeito, criativo e… ingénuo.

A primeira badalada não o fez estremecer. Tampouco a segunda.

- Lembras-te de uma noite fria – também de aniversário – em que pegaste na tua bicicleta e me disseste: “ É hoje que vou ensinar-te a andar de bicicleta” . Lembras-te?

Ele sorriu em compasso com a terceira badalada.

Lembrava-se sim.

Eram adolescentes, colegas de escola… e ela ousara confessar-lhe não saber andar de bicicleta.

- Impossível – respondera ele, atónito – todo o mundo sabe andar de bicicleta.

E após uma ligeiríssima pausa, contrapusera:

- E lembras-te tu daquele dia em que, pensando nós estar sozinhos na praia, descansados, rodeados de gente desconhecida, namorando tranquilamente… fomos surpreendidos por uma gritaria imensa e de repente, surgidos sabe-se lá de onde, apareceram todas as nossas filhas e netos, por uma mera coincidência, juntos todos no mesmo local, numa praia tão grande?

- Se me lembro… para além do embaraço, apanhei um susto…

Dez… Onze… doze badaladas.

Só mais um segundo, mais um virar de página, um dia mais, um ano mais.

- Parabéns, meu amor… agora já te posso chamar de octagenário…

Ele riu-se, correspondendo ao beijo apaixonado da companheira de muitos anos.

Quem os visse ou ouvisse assim… aceitaria todas aquelas recordações com a condescendência de uma vida bem vivida, repleta de peripécias e momentos de partilha, de pequenas cumplicidades.

Como poderia alguém suspeitar que nada aquilo acontecera realmente?

Ele nunca a ensinara a andar de bicicleta, tal como nunca partilhara os bancos da escola com ela, haviam-se conhecido já bem adultos. Nunca haviam sido surpreendidos pelas filhas ou netos na praia, tal como muitas outras peripécias narradas com a emoção real de quem viveu cada segundo daquele passado fantasiado.

Sempre assim fora, entre eles os dois.

A divagação de um deles era o rastilho imediato para o deleite do outro.

Ou seria simplesmente o polvilhar da realidade com salpicos de algodão doce?

Não.

Aquela… parte ficção, parte realidade, era a realidade por inteiro, fazia parte das memórias de ambos, existia como o declamar de um texto em palco, cada um deles bem ciente das suas deixas.

Aquele passado, real ou imaginário… era deles… e só deles.

- Olha… sabes uma coisa? E se bebêssemos uma ginginha para celebrar?

- Uma ginginha? Ai o que tu me foste lembrar… a primeira vez que provámos uma ginginha… oh… ainda te lembras onde foi, ainda te lembras?

- Claro que me lembro… até me lembro do que tu vestias naquele dia… e vais ver que não me engano…

E lá foi desfiando mais um rol de memórias que para vocês, amigos leitores, serão tão reais como as palavras deste texto.

E para eles, as personagens desta história parte real, parte ficção… também.

Afinal... a quem mais importa a verdadeira realidade das coisas... senão a quem a vive?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

As 365 palavras




AMOR…PAZ…PROSPERIDADE…

Saúde… onde estava a caixa azul da saúde? Era capaz de jurar aos seus botões que ainda na véspera as ordenara de novo, desta feita por ordem alfabética. Saúde, saúde, letra “S”… essa agora… onde estaria escondida?… ahhh….

Com um suspiro de alívio, pôs-se em bicos de pés, esticando-se toda. Não se lembrava de a ter guardado na última prateleira, mas enfim… o importante era que a encontrara.

Retirou-a do local e pousou-a sobre a mesa do pequeno quarto, há muito transformado em arrecadação. Casas pequenas.

Um dia… vou mesmo ter que pôr alguma ordem nisto… - pensou.

E antes que cedesse à tentação de no imediato arrumar algumas peças de roupa soltas, ou finalmente retirar daquele canto a velha bicicleta de ginástica, abriu o fecho do colar, retirou a medalha e depositou-a apressadamente na pequena caixa azul.

Acto contínuo, pegou numa outra caixa – em tudo idêntica à primeira, excepto na cor – fechou as luzes e rumou à sala.

No fim-de-semana… arrumo tudo no próximo fim-de-semana… - um pensamento promissor, no mínimo.

A caminho da sala, apanhou a chávena de café fumegante, esquecida na cozinha.

Abriu as janelas.

Primavera… finalmente primavera…

Enquanto sorvia o café demasiado quente, ia lançando olhares disfarçados à pequena caixa entreaberta que trouxera da arrecadação; quadrada, de cartão cor-de-rosa, sem laços ou artifícios. O importante… era o seu conteúdo.

Uma medalha, um círculo fino de prata.

Um pequeno círculo de prata… em tudo idêntico aquele que retirara do pescoço, minutos antes, com a palavra “AMOR” gravada.

Colocou-o no pescoço, com a prática adquirida de um gesto tantas e tantas vezes repetido.

AMOR…PAZ…PROSPERIDADE…SAÚDE…ALEGRIA…AMIZADE…ALTRUISMO…GRATIDÃO…FÉ…

Quantas caixas possuía, cada qual contendo um pequeno círculo de prata, com uma palavra escrita? Quantas palavras escritas, quantos pensamentos positivos expressos em letras, em vontade, em actos de fé? Vinte, cinquenta, cem?

Não.

Muito mais que isso.

Exactamente… 365 caixas, cada uma contendo um pequeno círculo de prata, uma palavra de optimismo e gratidão à vida.

HONESTIDADE…PERSEVERANÇA…PAIXÃO…ESPERANÇA…

Um dia, há muito tempo atrás… a sua melhor amiga dissera-lhe:

“ Sabes…creio que andas demasiado triste… e sem razão. A vida é muito mais que as tuas tristezas… porque não tentas transportar contigo as boas ideias, os bons pensamentos? “

O resto… surgira naturalmente, em conversa ao serão, numa noite de Inverno. Alguns cálices de vinho do Porto depois, a ideia transformara-se num projecto, e de projecto a realidade…

No seu 40º aniversário… comprou um fio de prata, o mais fino, barato e simples que encontrou. E no mesmo dia, o primeiro circulo de prata.

Ali gravou a primeira palavra, já sabendo antecipadamente que em muitos dias usaria penduradas no fio de prata não uma, mas duas ou mais medalhas.

AMOR

Fora a primeira palavra gravada, a primeira das 365 que laboriosamente gravara, depois de muitas noites a escolher, seleccionar, separar. Nunca imaginara que o vocabulário pudesse albergar tantas palavras esquecidas de boas intenções.

Sorriu.

Amanhã… usarei a PROSPERIDADE… dava-me jeito uma ajuda…para reformar a casa, talvez uns sofás novos… e o AMOR, claro… sempre o amor…

domingo, 22 de maio de 2011

Uma pequena história...



Poderiam ser Caim e Abel.

Mas não o eram, apesar de igualmente nascidos no paraíso.

E tal como as míticas figuras dos tempos da Criação… também um deles pôs fim à vida do irmão, talvez cego de ciúme, vaidade, luxúria, ninguém o saberá jamais.

Irmãos gémeos, reluzentes, belos.

Malmequer… e Bem-me-quer.

A história preferiu esquecer o sórdido destino de Bem-me-quer. Nunca será contado nos bancos de escola que Malmequer, num belo dia de primavera, arrancou as pétalas - uma a uma - ao irmão e o deixou indefeso ao sol, para secar até morrer. Quando muito, restará o nome – Malmequer – invocando um sentir maléfico de que ninguém mais recordará a origem.

Mas a história, na sua imprevisível roleta, ditou que fosse o irmão sobrevivente a expiar por toda a eternidade a morte do desditoso Bem-me-quer.

E é assim que todos os dias, desde um passado longínquo… alguém colhe um malmequer e mesmo sem saber… evoca o nome do irmão morto, vítima do ciúme daquele que agora, sem saber, morre da mesma forma, vendo ser-lhe arrancadas com dor – uma a uma – todas as pétalas… e depois abandonado para secar… e morrer.

Malmequer…Bem-me-quer…Malmequer…Bem-me-quer…Malmequer…


terça-feira, 17 de maio de 2011

Saudades do Futuro


- Algo está errado… profundamente errado…

Um pensamento insistente, incómodo como uma dor de dentes; uma falha na muralha do espírito.

Passou a mão pela barba rala, num gesto inconsciente que repetia vezes sem conta, de cada vez que se sentava – como naquele momento – entregue aos seus pensamentos.

- Algo está errado… - repetiu num murmúrio.

Ninguém o ouviu.

O entardecer de Maio – igual a tantos outros – sibilava de ventos e trinados de pássaros, de papoilas vermelhas e espigas verde amarelo de trigo e centeio; um céu azul profundo, daquele azul que só os olhos mais azuis conseguem imitar.

Afastou as ervas altas com as mãos, deixando a descoberto os últimos tijolos do que fora, em tempos idos, uma eira.

Não era suficientemente velho para albergar na memória imagens das mulheres peneirando os grãos de cereal sobre aquelas pedras; mas o pai descrevera-lhe o ambiente, apontara a dedo o deambular dos caminhos sinuosos que contornavam aquele monte – nome antigo que significava fazenda ou habitação no cimo de um morro.

Monte dos Albardeiros, assim se chamava.

Talvez pelo extinto oficio dos albardeiros, homens rudes mas de mãos hábeis no trabalhar do couro, na construção de selas, albardas e alforges.

Fosse como fosse… o implacável passar dos anos ditara o abandono, os sons dos rebanhos de ovelhas a dar lugar ao avançar das ervas, ao secar dos eucaliptos e ruir dos telhados.

A antiga eira resistira heroicamente, disfarçada da inclemência do sol pelo manto de ervas e musgos que a camuflavam por completo na paisagem.

Existem lugares assim… que mesmo sendo banais, evocam sensações únicas.

Talvez que outros procurassem o refugio e silêncio no alto de uma árvore, à beira mar, numa auto-estrada, num sótão abandonado, no alto de uma cachoeira. Ele descobrira naquele pequeno círculo de tijolos avermelhados, rodeado de ervas altas, um sereno pedaço do paraíso… e ali se refugiava, sempre que o espírito lhe pedia um pouco de paz e clemência.

Mais um… aniversário, simplesmente isso. Mais um.

Pudessem os desejos ser ouvidos e levados pelo vento… e ele gritaria a plenos pulmões o que lhe ia na alma.

Mas o vento não ouve nem faz eco de mais nada, senão dos próprios passos. E os desejos… ah… de que serviria gritar ao vento os seus desejos?

- Algo está errado…

Há muito que aquelas simples palavras lhe atormentavam os sonhos, como uma sensação indefinível de um grão de areia raspando na engrenagem bem oleada dos dias monótonos e cinzentos que vivia.

Monótonos, cinzentos, inócuos.

Reclinou-se sobre o manto verde e desapareceu sob a linha do horizonte, bem abaixo das espigas, malmequeres, cardos e hortelâs.

Observou sem pressa as primeiras estrelas no céu, o subir da lua no firmamento cristalino.

A sensação familiar de um nó na garganta empurrava-lhe os pensamentos em direcções por desbravar.

Medo do desconhecido?

Medo de arriscar?

Chega um momento… em que a palavra “urgente” assume um peso nunca antes revelado. Talvez fosse tão somente um mero aniversário, é verdade. Ou uma desculpa inconsciente para reflectir sobre o que era… ou aquilo em que se estava a transformar.

Ou uma forma muito criativa de se continuar a enganar a si mesmo.

- Medo do desconhecido… medo de sofrer…

O murmúrio morreu-lhe nos lábios.

Uma estrela cadente rasgou o azul quase negro dos céus, um breve instante de luz desenhado a fogo sobre o manto de estrelas. Um desejo por conceder.

Um desejo.

Porque não? Um desejo, um mero desejo, um único desejo, em simples desejo.

Porque não?

Fechou os olhos e cerrou os punhos, num combate imaginário contra os deuses e o destino.

- Desejo que…

O vento não amainou, as criaturas da noite não interromperam os seus afazeres, a lua não se tornou mais brilhante nem as estrelas mais incontáveis nos céus. Nada mudou naquela penúltima noite de Maio, senão talvez a inquietação do espírito.

A vida é feita de opções, dizem.

Algumas certas, outras erradas, outras incertas.

Mas acima de tudo.. é feita da capacidade de mudar, de transformar, de refazer, de aperfeiçoar ou de simplesmente … criar algo de novo, diamante bruto de cinzas feito.

E também.. de voltar atrás, não aquele voltar atrás em busca de passados já gastos… mas o voltar atrás para apanhar do chão os diamantes que por vezes se jogam fora, pensando ser vidro baço.

E entretanto… eis que desponta a manhã…

sábado, 7 de maio de 2011

As olheiras da concórdia


Onde vais?

- Não sei… sinceramente nem sei… só sei que vou…

- Poderias ficar, só um pouco mais…conversar, talvez?

- Gostaria muito… mas sabes, creio que já esgotámos as palavras…

- Não digas isso… connosco as palavras nunca se esgotaram…

- Não, não se esgotaram, é certo. Mas cansaram-se, de tanto se digladiarem entre si…

- Mas isso só acontece por tu seres um teimoso, um incorrigível teimoso, nada mais…

- Talvez, sim… talvez que a minha teimosia e a tua ânsia de controlar todos os átomos em teu redor…

- Não sejas assim, eu não sou controladora… preocupo-me contigo, simplesmente isso…

- Sei que sim, do teu jeito… talvez como também sintas porventura a minha teimosia, sempre que faço algo a pensar em ti… e que não te agrade…

- Então… se nos entendemos tão bem… porque partes? Sabes que gosto de ti, acima de todas as coisas…

- Sei… tal como eu também gosto de ti, muitas vezes mais que de mim próprio…

- Então… não partas… fica…

- Não posso… voltaríamos em breve a brigar e a dardejar farpas… como um eterno repetir de dias já passados…

- Mesmo assim… não partas… fica…

- Mas porquê? Qual o sentido de ficar, já antevendo que amanhã, na próxima semana ou em outro dia qualquer brigaremos de novo… magoando-nos mutuamente? Mais vale simplesmente… deixar assim… e não sofrer mais…

- Não… não podes ir… isso seria desistir… não desistas. Olha… quando vires duas pessoas – pessoas normais, assim como nós – acabadas de brigar… sabes como reconhecer se são um casal… ou um simples par de namorados?

- Não estou a compreender onde queres chegar…

- Já perceberás. Mas primeiro responde-me. Saberias distinguir tratar-se de um casal ou de um simples par de namorados?

- Não, claro que não… como vou saber?

- Pois olha… é bem simples. Pelas olheiras.

- Pelas olheiras? Continuo sem compreender…

- Sim, as olheiras… é que sabes…depois de uma briga, mesmo daquelas bem feias, o par de namorados despede-se – ou nem isso – cada um ruma ao aconchego de sua casa, e na tranquilidade do sono… e dos mimos da família… a zanga dilui-se, esfuma-se, reduz-se a um mero incidente dos dias… e na manhã seguinte, quando se encontram de novo, aqueles dois rostos irradiam saudade, arrependimento… vontade de recomeçar tudo de novo…

- E com o casal…

- Com o casal… a briga vai com eles para a cama, fica estendida bem no meio dos lençóis como uma terceira presença, corta-lhes as palavras, tira-lhes a vontade de sonhar, reduz o descanso a um mero farrapo, aqui e ali ainda cortado por alguns restos de conversa inútil. E quando amanhece e ambos abrem os olhos, sabem qual o rosto que encontrarão pela frente… entorpecido de olheiras e do sono que não chegou a ser descanso. E então… terão que encontrar forças e inspiração… para fechar a terceira presença no armário e começar um novo dia… quer faça sol ou chuva, seja primavera ou Outono… é essa a diferença…

Ele pousou a mala no chão e olhou para a fechadura da porta.

Desistir… ou tentar de novo?

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Janela do mundo


( Foto de minha autoria - Cacela velha, Algarve )


- Mestre… algo me atormenta…

- Percebo que sim, meu amigo, percebo que sim… estarás melancólico, porventura?

- Melancólico? Não sei definir, mestre… é um misto de tristeza, apreensão… como se estivesse à janela a ver passar o mundo…

- É um pensamento deveras interessante, esse…

- Interessante, Mestre? Não. Não é interessante… é algo mais como uma solidão palpável, uma espécie de abandono…

- Fiquei curioso… e entretanto, suponho que já tenhas reflectido sobre a questão…

- Já… já pensei muito… e nada mais encontro senão a cauda dos meus próprios pensamentos… porque caminho em círculos, mestre?

- Ah, meu amigo… quem melhor que tu mesmo para descobrir as respostas que procuras? Mas… repito, fiquei curioso… falaste em abandono, em solidão… depreendo que a analogia com o veres passar o mundo da tua janela… terá a ver com esse facto?

- Certamente, mestre. Todos passa e ninguém me vê… serei assim tão invisível aos olhos dos que me rodeiam?

O mestre sorriu, em contraste com a expressão de pesaroso desânimo do discípulo.

- Sabes… quem anda na rua tem uma certa dificuldade em adivinhar quem se oculta por trás das janelas de cada casa… todas elas parecem iguais, principalmente quando fechadas… Já experimentaste abrir as janelas de par em par ou, melhor ainda… sair para a rua e tropeçar nos que ali passam?


quinta-feira, 28 de abril de 2011

Rastilho de sonhos



Houvera um tempo – lembrava-se bem – em que tudo se afigurava como urgente.

Crescer era urgente.

Amar era urgente.

Marcar posição era urgente.

Contestar era urgente.

Viver era urgente.

Tudo era urgente… mesmo que nem sempre soubesse o porquê.

Porque o importante… era mostrar ao mundo que existia, deixar uma pegada eterna na poeira dos dias.

Não bastava SER. Era urgente que os outros soubessem que ele era, que estava a “Ser”.

Houvera também um tempo em tudo se podia contar, medir, comparar, ultrapassar.

Ser mais forte, mais sedutor, mais crítico, mais criativo, mais, mais… sempre mais qualquer coisa.

A vida é feita de muitos tempos – pensou.

Recuou dois passos, encostando-se à parede caiada de branco; sim, aquela memória de um tempo ido ainda subsistia, trinta Invernos depois, a adolescência irreverente transformada numa meia idade que não sentira chegar, nem aproximar.

Aos olhos de todos os espelhos, reconhecia-se com o mesmo olhar, talvez mais enrugado é certo, talvez mais grisalho, talvez mais… velho; mas o mesmo olhar.

Um rodopio de lembranças envolveu-o numa súbita espiral de melancolia – sim, recordava-se bem, fora numa manhã, a caminho da escola, acompanhado de um amigo. Sem motivo ou pretexto, puxara de uma caneta grossa e rabiscara aquelas palavras na parede branca amarela de uma rua estreita e deserta.

O amigo ajudara-o em silêncio, retocando os contornos e limpando a cal esboroada da parede.

Depois continuaram rua fora, missão já cumprida.

Sonhar? Sim, certamente… lembrava-se do que queria dizer com aquele pequeno escrito, qual testemunho numa garrafa lançada ao mar.

“NINGUÉM PODE SONHAR POR TI”

- Está fantástico, não está?

Ele acordou da letargia, subitamente devolvido ao tempo presente pela voz cristalina.

- Se não se importa… - e fazia-lhe um gesto a pedir passagem – talvez daí eu consiga fotografar melhor…

- Claro, claro, desculpe… - e cedeu-lhe passagem, desviando-se um par de metros – aqui já não apareço na fotografia, pois não?

Ela sorriu, um olho a espreitar detrás da máquina.

- Obrigado… adoro grafitis, já vi muitos grafitis… mas este é simplesmente… sublime.

E colocou uma expressão de encanto genuíno que o deliciou.

- Sim… creio que tem razão… eu também me perdi, olhando para ele…

Ficou a vê-la, uma foto, duas, três, afinal meia dúzia. Tinha idade para ser sua filha, uma pincelada azul nos cabelos negros, as roupas de cigana fora de moda que ele tanto apreciara, nos seus tempos de adolescência.

Sentia que ela se identificara com a mensagem.

- Há quanto tempo estará isto aqui? Quem o terá escrito? Já imaginou? – e ia passando os dedos ao de leve sobre as letras escarlate – o que estaria a pensar a pessoa que escreveu isto aqui?

Ele ainda abriu a boca, impelido por instinto em dizer à jovem turista que fora ele o autor de tão singular expressão na parede. Mas claro que nunca o faria, não teria o mínimo cabimento, nem sentido.

- Sim… - limitou-se a concordar com um aceno de cabeça – tem razão… o que estaria a pensar o autor, quando escreveu isto?

Ela lançou-lhe um sorriso de censura.

- Autor… ou autora. Não sabemos, pois não?

- Autora? …ah, claro, claro… pois, autor ou autora, tem razão… nem está assinado…

Ela remexeu na bolsa, aparentemente em busca de algo.

- O senhor… faça de conta que não está a ver nada, ok?

E perante o olhar incrédulo dele, lá puxou de um pequeno objecto, que de pronto se revelou ser um lápis.

E sem se importar mais com a presença dele, encostou-se à parede e rabiscou algo. Depois virou-se, lançou-lhe um adeus e seguiu adiante rindo, como criança apanhada a meio de uma travessura.

“ E que todos quantos passem por aqui se atrevam também a sonhar”.

Ficou a olhar para o novo rabisco na parede.

As palavras – sabia-o bem – eram livres.

E por um ínfimo mas saboroso momento, sentiu-se feliz… enquanto causa – rastilho de sorrisos e de sonhos.

Sim… ela escrevera bem… o que vale a vida… sem esse atrevimento, essa rebeldia, essa coragem de … contra ventos ou marés… ousar sonhar?


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Renovação de contrato



Ex.mo Sr

Leonel Penedo da Conceição


Vimos por este meio relembrá-lo que dentro em breve expirará o contrato celebrado entre vós e a nossa empresa, “Paraíso na Terra, sociedade sem fins lucrativos, S.A”.

Esperamos continuar merecedores da vossa confiança, enquanto prestadores de serviços de felicidade, apostando na seriedade e transparência.

Face ao actual estado de crise, não aumentaremos – durante toda a vigência do novo contrato – um só cêntimo à vossa prestação; o nosso serviço continuará a ser, como sempre foi até hoje... grátis.

Queira devolver-nos por favor o cupão de resposta devidamente preenchido e assinado, para poder usufruir de mais um ano de serviços de felicidade, com cobertura total em caso de tristeza, depressão, ansiedade e todo o tipo de catástrofes naturais, sociais ou pessoais.

Recordamos também que... “


Não era necessário reler as restantes linhas da missiva.

Estava perfeita.


Sorriu.

Não era todos os dias que enviava por correio uma carta para si próprio.

E vendo bem as coisas... qual o problema?

Sim... porque não um seguro contra a tristeza, mesmo que imaginado, mesmo que na forma de uma folha de papel redigida pelo seu próprio punho... e remetida a si mesmo?

A loucura – sabia-o bem – era simplesmente um estado de espírito, nada mais.


Rua das janelas azuis... número sete... Vila flor...”


Empurrou suavemente o envelope e este desapareceu de pronto na ranhura estreita do marco de correio.


- Pronto, já está... e venha de lá mais um ano com cobertura total contra a tristeza...

domingo, 10 de abril de 2011

Uma aula... inesperada


- Mãe… sabes? O professor não gosta de mim…

A mãe pousou a colher de madeira no fogão e olhou de relance para o pequeno Miguelito, queixo enterrado nas mãos e expressão infeliz.

- Ora essa, Miguelito, que coisa para se dizer… isso nem parece teu…

O filho torceu o nariz, afastou os cadernos para o lado e pôs-se a rodopiar a esferográfica como se esta fosse um pião.

- Mas é verdade, mãe… o professor de Integração, é desse que estou a falar, tu conheces, mora ali ao pé do teu trabalho…

- Eu sei quem é o professor de Integração, Miguelito… e olha que é uma excelente criatura… Amândio, ou Amaro….

- Amadeu – lá corrigiu o Miguelito – trocas sempre os nomes – o senhor Amândio é o porteiro da escola…

- Ah, sim… claro, claro, que cabeça a minha… professor Amadeu, é isso mesmo…

Ela levou a colher de madeira à boca – talvez mais um pouco de sal, sim - e espiou o relógio. O tempo voava, as lides domésticas requeriam tempo, muito tempo… e tempo era precisamente aquilo que não tinha.

- Já preparaste a mochila? Não te esqueceste de nada? Hoje não é dia de ginástica? Já guardaste os ténis?

O Miguelito lá acenou que sim com a cabeça, continuando a tentar transformar a esferográfica num pião.

A mãe deixou-o em silêncio uns segundos, esperando o ferver da sopa; aproveitou para colocar os pratos, os copos, talheres – mais uma refeição à pressa – apanhar duas peças de fruta e um pequeno pudim.

Ser pai e mãe em simultâneo não era fácil; Não impossível… mas nada fácil mesmo. Por sorte, o horário escolar encaixara sem grande ginástica no seu, permitindo até por vezes almoçarem juntos, como naquele caso. Claro que tudo tinha que ser feito em corrida, claro que os esquecimentos aconteciam. Na semana anterior, levara por engano o lanche do filho para o banco, esquecera um dossier de serviço na reunião de pais e inutilizara por completo uma camisa branca ao deixar cair sobre ela os pincéis do Miguelito, entretido no trabalho de geografia.

Mas a vida também era feita de pequenas peripécias, e nem todas ruins.

Por coincidência, aquele mesmo professor – Amaro, Amândio, Amadeu, trocaria sempre os nomes – fora o protagonista.

Estacionara o automóvel no local de sempre. E como habitualmente, sempre à pressa, caminhando a passo largo até ao banco, ao mesmo tempo que bebia o café. E vai daí… uma mão segurando o copo de plástico, a outra tentando não deixar cair os dossiers… como reparar no professor, imóvel defronte da porta de casa?

O infeliz procurava lembrar-se se guardara as chaves de casa, quando sentiu o embate.

Primeiro o embate, logo depois o café bem quente projectado sobre a camisa, a gravata a mudar subitamente de cor.

- Oh… perdão, perdão, perdão… - e a mãe do Miguelito desfazia-se em desculpas – não sei como aconteceu, professor… a minha cabeça…

Ele abria e fechava a boca, sem saber se rir ou protestar. Mas antes de ter tempo para algo mais, já ela puxara de um lenço e zás… vá de atacar a gigantesca nódoa, num gesto mais simbólico que útil – desculpe-me… ia completamente distraída…

Passaram-se alguns segundos – pelo menos assim lhe pareceu – e quando ergueu os olhos, ainda agarrada à camisa do professor, encontrou-o com um sorriso desarmante.

- Anh… desculpe… Mariana… dona Mariana, creio…

Ela abanou a cabeça, concordando – sim, sim… a mãe do Miguel…

Ele continuava a rir.

- Dona Mariana… já me pode largar… - e com o dedo apontava para cima, algures para uma das varandas do primeiro andar, onde outra mulher seguia atentamente o desenrolar dos acontecimentos - … ou a minha mulher ainda pensa que nós temos um caso…

Dona Mariana, mãe do Miguelito, empregada bancária, dona de casa e levemente distraída… ergueu devagar o olhar… viu a mulher debruçada da amurada, os olhos sorridentes do professor Amadeu… e soltou-o de repente, como se toda a vergonha do mundo lhe tivesse descido sobre a cabeça. Sim… por favor… que a terra se abrisse e a engolisse… depressa, depressa, depressa. Que vergonha…

Deu consigo a sorrir – a sopa já fervia – só de recordar o incidente embaraçoso.

- Vá, Miguelito… vamos despachar-nos, o almoço está pronto…

Ele lá foi arrumando lentamente os cadernos, o estojo dos lápis e a inseparável playstation, enquanto a mãe despejava o caldo fervente sobre os pratos.

- E agora… já me podes então contar essa história do professor Amaro não gostar de ti…

- Amadeu, mãe… Amadeu. O professor chama-se Amadeu…

- Ah, sim… claro, o professor Amadeu. Ora então conta lá as tuas desventuras, meu filho…

Miguelito olhou para a mãe, sem perceber ao certo se a ironia era sentida ou mera brincadeira.

- Ele deitou fora um trabalho que eu fiz… na sala…

A mãe empertigou-se toda, sem acreditar muito bem no que acabara de ouvir.

- O quê? Não devo ter percebido bem. O professor de Integração deitou fora um trabalho… um trabalho que fizeste na aula, foi isso?

Miguelito acenou que sim, depois que não.

- Mais ou menos… ele deitou-o para a água.

A mãe ficou a olhar para ele, boquiaberta. Miguelito sempre tivera o condão de a surpreender com tiradas inesperadas… mas desta feita, esmerara-se, sem dúvida.

Sentou-se, a situação requeria um pouco de calma. Certamente existiria uma explicação plausível para tudo… até porque a imaginação fértil do pequeno Miguel era bastante avançada… tendo em conta os seus onze anos de idade.

- Muito bem, muito bem… prometo ficar caladinha… não te interrompo… e tu contas-me toda essa história, muito bem contadinha, pode ser? Com vírgulas e tudo, mas mesmo tudo. Pode ser?

Ele atacou um minúsculo gole de sopa, queimou-se, protestou.

E lá contou a sua história.

- Pois olha… foi assim… logo de manhã, quando entrámos, ele pediu-nos para tirar uma folha do dossier… e disse para escrevermos um texto sobre uma frase que ele iria colocar no quadro. É esquisito… ele não costuma fazer nada destas coisas, quer sempre ver os nossos cadernos… mas desta vez até o Zé Luis ficou sério, ninguém percebeu muito bem.

E como demorasse a retomar a história, a mãe lá o apressou.

- Bem… até aí percebi. E o que escreveu ele no quadro?

O Miguelito fez uma expressão de estranheza.

- Uma coisa esquisita, já te disse. “ Eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto.” Foi só isto. E disse que tínhamos meia hora para escrever o que quiséssemos sobre aquela frase.

A mãe conteve um sorriso. A disciplina de Integração do Miguelito sempre fora um manancial de surpresas, desde que o professor Amadeu a assumira na escola. E a pretexto de um currículo onde seria suposto falar de cidadania, ética, cultura cívica… surgiam por vezes aulas no mínimo… inesperadas.

Sim… talvez fosse essa a palavra adequada para descrever o professor Amadeu.

Uma personagem… inesperada.

- E então? O que escreveste tu sobre a frase do quadro? Estavas inspirado?

O Miguelito fez que não.

- Não… ninguém sabia o que havia de escrever, mãe… ele até nos deixou conversar uns com os outros, imagina… e ficou sentado a olhar para nós e a sorrir… muito estranho, mãe, mesmo muito estranho… e nós escrevemos algumas coisas, a Maria Luísa escreveu a folha inteira, não sei como ela conseguiu… o Zé Luis só fez duas linhas…. Eu fiz metade da folha…

- Ah… muito bem, muito bem… então… e depois? O que aconteceu?

- Depois… o professor Amadeu pegou nas nossas folhas, leu-as todas baixinho e pediu para irmos com ele, precisava de nos mostrar uma coisa no pátio…

A sopa arrefecia, enquanto a mãe do Miguelito segurava a colher. Desta vez… a coisa prometia, sem dúvida.

- … e nós lá fomos, atrás dele . continuou – e a dona Matilde, a funcionária do primeiro piso, fez uma cara muito espantada, quando nos viu a passar no corredor… e imagina, mãe? Levou-nos até ao lago, aquele que tem a fonte…

- O lago? Aquele junto das árvores, no pátio da tua escola?

- Sim… esse mesmo. E depois… depois é que foi mesmo… muito estranho. Nem imaginas…

A mãe concordou com um movimento de cabeça. Pois não, não imaginava.

- Ele pegou em cada um dos nossos trabalhos… e começou a fazer… aqueles barquinhos de papel, como os que me ensinaste a fazer, lembras-te? Aqueles em que se dobra a folha várias vezes…

- Sim, sim… sei quais são… e depois? Vá, conta… e depois?

- Depois? Depois atirou-os à água, e disse para olharmos para eles. Oh mãe… ele atirou os nossos trabalhos à água, a sério, não estou a inventar…

- Anhhh… sei… claro que não estás a inventar… mas ele disse alguma coisa? Disse porque motivo os tinha lançado à água?

- Disse… mas ninguém percebeu nada. Nem eu.

A mãe fez-lhe sinal para que metesse mais uma colher à boca.

- Sim… mas tenta lembrar-te… o que disse ele?

O Miguelito esforçou-se por reproduzir a ideia, apesar de não se lembrar das palavras.

- … qualquer coisa sobre os barcos serem diferentes… apesar de feitos do mesmo papel, dobrados do mesmo modo… mas com diferentes coisas lá escritas…. oh, mãe… eu não percebi, a sério que não percebi…

A mãe sorria, cada vez mais interessada naquela aula … inesperada.

- E ainda te recordas da frase que ele escreveu no quadro?

- Claro que recordo, era tão esquisita… “ eu sou culto, tu és inteligente, ele é esperto”…o que achas que significa, mãe? Tu sabes?

A mãe continuava a sorrir-lhe. Aquele professor Amadeu…

- Talvez Miguelito, talvez… olha, já imaginaste… daqui a alguns anos, ou muitos anos… o que estarão fazendo todos os teus colegas da turma? Já imaginaste o que poderão ser… quando forem grandes… adultos?

Ele encolheu os ombros. Como adivinhar o futuro?

- Um daqueles barquinhos… poderá transformar-se num grande cientista…. Outro talvez num escritor famoso, outro ainda num atleta fantástico… ou quem sabe outro ainda num varredor de rua, no senhor do talho ou num arrumador de carros… já pensaste nisso?

Miguelito acenou um não indeciso com a cabeça.

- Sabes Miguelito… se o vento for forte… qual será o que ficará mais despenteado? O esperto… o inteligente… ou o culto?

O filho olhou para a mãe, encantado.

- Isso é uma adivinha, mãe?

- Não… diz lá… qual pensas que ficará mais despenteado?

Miguelito hesitou, sem saber muito bem como atacar o problema.

- Não sei… como posso saber?

A mãe passou-lhe uma peça de fruta para junto do prato.

- É simples, Miguelito… ficará mais despenteado… aquele que não estiver usando um chapéu, não achas?

O filho abriu a boca, num protesto inútil.

- Mas… tu não falaste em chapéus… assim não vale… porque não falaste em chapéus?

A mãe levantou-se, esvaziando os pratos sobre o lava-louças.

- Ora, Miguelito… porque há coisas que não devem ser ditas…. Devem ser descobertas… e suspeito…. Suspeito vagamente que talvez fosse isso que o professor Amadeu… enfim…

Olhou para o relógio de parede e deu um salto.

- Miguelito…. Ai… ai… olha as horas, olha as horas…. Estamos atrasados, corre, corre, vai lavar os dentes, anda, anda, mexe-te… senão sou despedida…